Guerrilheiro do Caparaó esteve em Cotaxé, na zona do Contestado capixaba

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0900“O operário faz a coisa e a coisa faz o operário”. No verso singelo de Vinicius de Moraes no seu poema “O operário em construção”, expressa-se a construção de um cidadão. Quando me propus a escrever “Caparaó – a primeira guerrilha contra a ditadura”, sabia o que não queria: fazer um livro-reportagem sobre um fato isolado. Interessava-me, sobremaneira, descobrir a construção de cada homem (ou mulher, se houvesse) que participou daquele movimento de resistência armada, que se constituiu no primeiro grito concreto contra o regime que se instalara no Brasil em 1964.

A ditadura, se não estava totalmente instalada, estava a caminho e se consolidava a partir do golpe dentro do golpe, com a prorrogação do mandato do marechal Castelo Branco e, depois, com a sua substituição pelo general Arthur da Costa e Silva, marcando a ascensão dos linhas-duras do regime, em vez de se realizarem eleições para devolver o poder aos civis, como era a promessa que atraiu a classe média para apoiar o golpe civil-militar de março/abril de 1964.

A ditadura, que durou enquanto quis, ou enquanto as circunstâncias geopolíticas e econômicas permitiram, entrando numa fase de transição para a reconquista do estado democrático de direito com a eleição indireta de Tancredo Neves em 1985, mais do que corpos, matou mentes e interrompeu um processo histórico da cidadania brasileira em construção, com todas as contradições e conflitos que são naturais a esses momentos. Resultado: 50 anos depois, faltam-nos lideranças políticas nas quais possamos confiar.

Este é o preâmbulo a uma história à margem da história da Guerrilha do Caparaó. Veio à tona quando entrevistei um lavrador com quatro anos de estudo e que, depois dos 50 anos de idade, descobriu o caminho das letras, já publicou sete livros, tem mais sete manuscritos, todos em versos simples, que retratam a história da região e sua gente, além de 250 músicas.

Descobri que esse lavrador é filho de posseiros que migraram da Bahia para a região Norte do Espírito Santo, e que nasceu em Jequié, mesma origem do subcomandante da Guerrilha do Caparaó, Araken Vaz Galvão, hoje capitão reformado do Exército Brasileiro, morando em Valença (BA).

Sensível, Araken percebeu logo a razão de eu ter-lhe enviado o artigo sobre o “seu” Paulino Leite, sem que eu lhe falasse. E me ligou para contar: como se fosse um guerrilheiro em construção, Araken morou na conturbada região de Pedra da Viúva, que deu origem a um povoado, batizado com o nome indígena de Cotaxé e chegou a ser capital do incipiente Estado União de Jeová, criado por Udelino Ramos, uma espécie de “Antonio Conselheiro capixaba”, nos idos dos anos 50.

A Pedra da Viúva brotava como um bolo no meio da fazenda que o pai de Araken, Osvaldo Vaz Galvão Sampaio, comprou de posseiros da região. E lá o menino Araken morou e tem lembranças de infância, até seu pai morrer de tifo um ano depois de chegar.

“Um dia meu pai foi subir a Pedra da Viúva e caiu uma chuva forte de repente. Meu pai pegou o chapéu e aparou a água que descia da pedra e bebeu. Possivelmente, aquela água estava contaminada. A febre tifóide o abateu e em menos de 30 dias ele morreu. Então, minha mãe vendeu os dois lotes que tínhamos e foi com esse dinheiro que, depois de voltar à fazenda de meu avô, em Jequié, fomos morar no Rio de Janeiro”, conta Araken.

O ex-sargento-guerrilheiro conta que seu pai vendeu, entre 1939 e 1940, a pequena fazenda que tinha em Ipiaú, no Vale do Rio das Contas, e levou a família “para Minas”. Na verdade, para o lugar que hoje é Cotaxé, em Ecoporanga, no extremo Norte do Espírito Santo, e que durante muitos anos fez parte de uma região contestada por Minas, Espírito Santo e Bahia.

O pai viajou na frente, com uma tropa de mulas, acompanhado de dois filhos mais velhos, de 13 e 14 anos. Uma viagem de 246 léguas, algo em torno de 1.500 quilômetros. A viagem do restante da família – a mãe, Araken e duas meninas – durou quase um ano. Ele conta: “O dono das terras era um tal Mirabeau, que disse para o meu pai que tinha 30 lotes de terras lá no São Mateus (referência ao rio braço Norte do São Mateus), num lugar chamado Pedra da Viúva, mas que tinha uns caboclos lá. Meu pai chegou, comprou dois lotes e caiu de machado derrubando a mata.

A terra era muito boa. Eu tinha quatro anos quando cheguei lá com minha mãe. Para chegar, tivemos que ir em lombo de burro até Ilhéus. De lá, embarcamos num navio costeiro, o Aníbal Benévolo até Caravelas, onde pegamos o trem da estrada de ferro Bahia-Minas, que o Milton Nascimento cantou numa composição com o Fernando Brant.

A ditadura, depois, acabou com essa linha, como acabou com tantas outras. De trem, chegamos a Carlos Chagas e, de lá, fomos para a Pedra da Viúva, onde já estavam meu pai e meus dois irmãos.

Era uma planície linda e no meio ficava a pedra. Foi lá que eu conhecia a cabocla Jandira, que menciono em meu romance Crônicas de uma Família Sertaneja na história da mulher apunhalada que o coração caiu no chão e ficava pulando.

A Jandira contava isso e eu guardei como memória de minha infância. Quando chegamos, a casa ainda não estava totalmente pronta, as portas não tinham dobradiça. Minha mãe, em Carlos Chagas, comprou umas galinhas e levou. De noite, a onça vinha e tentava pegar as galinhas, que ficavam embaixo da casa, construída alta por causa de bichos peçonhentos.

Um dia meu pai teve uma visão. Disse que ali nasceria uma cidade, pegou as mãozinhas das minhas irmãs, circundou e disse: aqui vamos construir uma praça. Seis meses depois, ele pegou tifo e morreu. Acho estranho que nunca o nome dele apareceu em qualquer crônica sobre a região, nenhuma narrativa, mas ele ajudou a fundar o povoado.

Ele foi o primeiro morador branco. Já havia muita confusão. As pessoas pegavam arsênico e misturavam no açúcar para envenenar os índios. Meu pai escreveu uma carta indignada ao governador de Minas, Benedito Valadares, contando os absurdos. Isso deve estar lá no Arquivo Público de Minas Gerais.

Quando ele morreu, meu avô mandou buscar a gente. Eu soube que o governador mandou umas tropas lá e que barbarizaram com os jagunços, até montar de cela neles a captura montou.

As terras eram muito boas, meu tio Manoel Vaz Sampaio, o Maneca, ficou lá. Era do Partido Comunista e participou daquelas ações junto com os camponeses para resistirem aos grileiros que chegaram depois, com apoio das forças públicas, para ocupar as terras, que eram devolutas.

Mais tarde, quando eu me preparava com os sargentos para fazer Caparaó, foi esse tio que me propôs entrar no Partido Comunista. Ele morreu recentemente na miséria em Brasília. Foi caseiro do Haroldo Lima, deputado federal do PCdoB, da Bahia. Homenageei o Maneca nas minhas crônicas como o homem valente que lutou com Lampião. Claro, foi uma criação minha, mais para homenagear a valentia de meu tio.

Aquela região era muito rica em pedras preciosas, principalmente águas marinhas. Tinha lá um caboclo que ficou rico umas duas vezes porque sonhava. Ele dizia que quando sonhava com bosta podia ir no lugar onde sonhava e cavar que achava pedras. Ele não gostava de cavar, dava o sonho à meia, e sempre achavam as pedras.

Dois anos depois que voltamos para a Bahia, o navio Aníbal Benévolo foi afundado na costa de Alagoas/Sergipe por submarinos alemães. Eu acompanhava a guerra pelo rádio e ouvi isso. Quando aconteceu o torpedeamento do navio, lá em casa as meninas choravam como se tivessem perdido alguém da família.

Com o dinheiro da venda dos dois lotes, minha mãe pegou a gente e fomos morar no Rio de Janeiro, onde ingressei no Exército e acabei expulso em 1964 por causa de minha militância com o Movimento dos Sargentos. Organizamos a resistência e fomos fazer a Guerrilha do Caparaó. Depois, fui preso, condenado, fugi, entrei na Embaixada do Uruguai, onde fiquei mais de um ano e fui para o exílio, vivi no Uruguai, no Peru e no Equador. Retornei com a anistia, em 1979”.

Araken, durante seu exílio na América Hispânica, apaixonou-se pela literatura chamada realismo fantástico ou mágico, influência que procurou adicionar ao seu mundo sertanejo, usando da magia do falar do sertanejo, através do recurso de escrever uma espécie de cordel em prosa. Escolheu Valença (BA) para viver seus dias de nova militância, a cultural.

Literatura

Araken é autor de “Crônica de uma Família Sertaneja”, romance, o I tomo da trilogia sertaneja; de Pargo – Contos. Co-autor e organizador de Valenciado – Crônicas; de Rio de Letras – crônicas; Trívio – crônicas. É organizador de “Novos Valencianos”, poesia e textos. É autor ainda das peças de teatro (escritas em espanhol e levadas em cena em Lima, Peru) “Apenas una Mujer” e “A Fossa” – monólogo dramático musical. Sendo autor ainda de “Saga de um Menino do Sertão” (II tomo da trilogia sertaneja); de Memorial da Angústia –Tomo Um – Sonata em Dor Maior; Tomo Dois – Em Busca do Esquecimento; Tomo Três – Por Causa de Lucía; Histórias Sertanejas (III tomo da trilogia sertaneja); Crônicas das Prisões e do Exílio; Crônicas do Cotidiano – Tomo I e Tomo II.

No campo de literatura policial, é autor de: Quem matou a Garota do Outdoor; O Crime das Ligas; Morte ao Entardecer; A Gramática do Crime. No campo de ensaios possui os seguintes trabalhos: O Sargento na História do Brasil – memórias/ensaios; Pequena História do Cinema – Um Novo Olhar – ensaio; Breve História do Neo-Realismo; O Fantástico em Literatura; Os Melhores Westerns da Minha Infância. É autor ainda de “Acalanto Tardio” – história infanto-juvenil.

Tem trabalhos seus publicados na revista eletrônica Bestiário e nas revistas da União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro), da qual é sócio correspondente, e na Revista da ALER – Academia de Letras do Recôncavo – Bahia – da qual é membro. É também membro titular do Conselho Estadual de Cultura, Bahia e Presidente do Fórum Permanente de Academias de Letras da Bahia. No ano de 2004 ganhou o prêmio principal do concurso do Banco Real “Talentos da Maturidade, com o conto “Os Mortos”. É membro da Academia de Letras do Recôncavo (Bahia) ALER, Vice-Presidente da Academia Valenciana de Educação, Letras e Artes e foi agraciado com o título de professor honoris causa, por notório saber, pela Faculdade de Ciências Educacionais – FACE, Valença, BA.

Tem proferido palestras, inclusive na FACE, na Faculdade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (campus Nova Iguaçu), sobre temas relacionados com cultura e arte, e colaborado em vários jornais locais.

Atualmente, dedica-se ao seu projeto de uma Fundação particular com o seu acervo de quase 1.500 livros, quatro mil recortes de jornais, sobre os mais variados temas, uma coleção de revistas de vários tipos (ainda não catalogadas) e sua coleção de música clássica, de MPB e de filmes (DVD), além de um Banco de Dados eletrônico, com mais de mil verbetes sobre temas variados.

Por: José Caldas da Costa

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Caparaó – a primeira guerrilha contra a ditadura

Livro do jornalista José Caldas da Costa, que conta a história do movimento armado realizado por militares expulsos pelo regime de 1964 no Brasil. Prefácio de Carlos Heitor Cony. Para adquirir: caldasjornalista@gmail.com

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